Parecem fantasmas: os bizarros raios-X que tocavam música na URSS – POA SHOW
Junho 24, 2022Imagine viver sob a sombra de um regime autoritário que proíbe todo e qualquer tipo de estrangeira. Imagine então passar por isso durante o auge do jazz e na eclosão do rock and roll, fenômeno que mudaria os costumes do mundo na segunda metade do século 20.
O resultado dessa conta, que não fecha, gerou um dos casos mais fascinantes e singulares da história da mídia física: a era em que discos pop foram produzidos e consumidos a partir de placas de raio-X hospitalares. Aconteceu na União Soviética.
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Com a censura e o isolamento em pleno vigor na Guerra Fria, essa foi a maneira encontrada por jovens descolados dos anos 1950 e 1960 de consumir o que o estado soviético via como a mais nova, perniciosa e antirrevolucionária cultura: Elvis, Beatles, Rolling Stones, Ella Fitzgerald, Chubby Checker.
Imagem: Paul Heartfield
Como os discos eram feitos
Importada de laboratórios de rádios húngaras da Segunda Guerra, no auge de escassez de matéria-prima, a ideia consistia em copiar o conteúdo de discos em uma superfície alternativa, criando uma chapa de celuloide reproduzível.
O equipamento usado nos primeiros cortes, um torno portátil alemão da marca Telefunken, havia sido projetado como gravador de voz para repórteres de guerra. Mas o jeitinho soviético conferiu a ele versatilidade.
Aparelho caseiro de cortar discos usado na União Soviética Imagem: Reprodução
A primeira peça teria chegado a Leningrado (hoje São Petersburgo) em uma loja de souvenirs, que durante o dia oferecia aos clientes o serviço de gravação suas vozes. Na surdina, o produto de maior saída era outro: o ópio sonoro imperialista.
O burburinho cresceu e rapidamente o torno importado ganhou cópias. ‘Bootleggers’ recortavam os círculos das placas com uma tesoura e muitas vezes furavam o buraco central com um cigarro. Milhares de discos clandestinos foram vendidos dessa forma no país.
E como eram esses discos?
Devido a sua tênue gramatura, eles só armazenavam músicas em um dos lados, de dois ou três minutos de gravação. A superfície e borda eram irregulares, feitos principalmente no formato de 7 polegadas, para serem reproduzidos a 78 rotações por minuto nos toca-discos de então.
Informação gráfica? Alguns rabiscos a caneta. E a qualidade de som passava longe da alta-fidelidade de lançamentos oficiais. Mas, para quem nunca havia escutado “Rock Around the Clock”, “Blue Suede Shoes” e “Tutti Frutti”, —só músicas folclóricas e comunistas eram permitidas nos meios de comunicação—, acessar aquele conjunto de sons proibidos era mágico.
Confira abaixo
Há relatos curiosos dessa época. Adolescentes pediam com frequência músicas indisponíveis a traficantes, que dependiam da boa vontade de fornecedores estrangeiros. A solução: vendedores copiavam qualquer outra no lugar, já que ninguém conseguiria diferenciar músicas que nunca haviam sido ouvidas.
Placas eram compradas e vendidas como drogas em esquinas, becos escuros e parques, longe da fiscalização stalinista. Só em 1958 o governo descobriria o esquema. A distribuição foi banida e, com a chegada dos gravadores reel-to-reel nos anos 1960, que deram início à cultura dos K7, os discos de celuloide caíram em desuso e viraram peças de colecionistas.
Mas por que a matéria-prima era uma placa de raio-X? Duas razões explicam o suporte
A importância desse episódio, conhecido internacionalmente como “bone music” (“a música do osso”), é tremenda. Já foi radiografada em exposição, documentário e no livro “X-Ray Audio: The Strange Story of Soviet Music on the Bone”, escrito por Stephen Coates, líder do grupo inglês The Real Tuesday Weld.
Legado
Considerados o pontapé inicial da pirataria na música, o discos de raio-X deram ainda visibilidade aos Stilyagi, membros de um movimento contracultural russo inspirado nos beatniks que virou símbolo de liberdade individual e resistência ao regime, que perduraria por mais três décadas.
Com seu aspecto fantasmagórico, estética similar à de bandas de death metal e punk underground que nem sequer existiam, eles também são precursores dos , que ganhariam tração na própria União Soviética anos depois, e uma inspiração para os picture discs, os vinis com imagens na superfície que hoje fazem barulho entre colecionadores.
Ainda é possível encontrar esses objetos de arqueologia musical sendo vendidas em antiquários e mercados de pulgas na Rússia e em ex-repúblicas soviéticas. E eles não são baratos. Em sites como o eBay, “morrem” em média por R$ 200 reais cada um.
Imagem: Reprodução
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E até a próxima datilografada!